0 quinta-feira, dezembro 08, 2011 | Author: #Design | Marcadores:

Tudo aquilo que consideramos “real” constitui apenas um irrisório grão de areia da superfície de uma enorme “casca” formada por um trabalho de aprendizado e conhecimento acumulado no decorrer de nossas vidas. Diante disso, somos convidados a interrogar, mas sem nada pressupor, o que há por detrás desta casca. Não é a realidade, não é o mundo em si, não são os fatos – estas ideias também fazem parte da casca. É simplesmente algo desconhecido.

Alguns filósofos defendem que é impossível enxergar o que há por detrás desta casca porque toda consciência é memória: “a estrela que vemos no céu talvez já tenha deixado de existir anos atrás”, ou seja, toda e qualquer percepção está atrasada em relação ao objeto percebido. No entanto, este raciocínio já pressupõe a existência de um objeto percebido e, portanto, já pressupõe que há um “mundo” por detrás da casca. A “memória” é entendida apenas como um indício, um rastro ou vestígio deste suposto “mundo”.

Mas o raciocínio anterior é útil para entendermos que a própria “casca” é um pressuposto contestável. Que a casca é a casca de si mesma. E que, portanto, qualquer ideia proferida acerca “do mundo”, qualquer teorização, não provém “do mundo”, mas provém de quem profere a ideia, provém de quem teoriza. Isso significa que não percebemos as coisas a partir “do mundo”, mas a partir da percepção em si.

A percepção antecede, cria e recria o objeto percebido.

Sendo assim, a percepção não é nem uma função sensorial e fisiológica, nem um fenômeno transcende e místico. Não há como sabermos o que é a percepção sem antes tentarmos percebê-la. A questão é que a forma de perceber prescreve a coisa percebida. Então aquilo que chamamos de “realidade” limita-se a esta forma de perceber, limita-se a nossas experiências.

“O visível à nossa volta parece repousar em si mesmo. É como se a visão se formasse em seu âmago ou como se houvesse entre ele e nós uma familiaridade tão estreita como a do mar e da praia. No entanto, não é possível que nos fundemos nele nem que ele penetre em nós, pois então a visão sumiria no momento de formar-se, com o desaparecimento ou do vidente ou do visível. Não há, portanto, coisas idênticas a si mesmas, que, em seguida, se oferecem a quem vê, não há um vidente, primeiramente vazio, que em seguida se abre para elas, mas sim algo de que não poderíamos aproximar-nos mais a não ser apalpando-o com o olhar, coisas que não poderíamos sonhar ver inteiramente nuas, porquanto o próprio olhar as envolve e as veste com sua carne. (…) Qual a razão por que, envolvendo-os, meu olhar não os esconde e, enfim, velando-os, os desvela?” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 128).

Em outras palavras, cada um de nós é como um peixe que não vê a água na qual está imerso e, por conseguinte, sua existência “real” (do peixe e da água) não passa de um ambiente de significados, redes de sentido. Tal concepção aproxima-se da ideia do solipsismo que, em linhas gerais, é a crença de que nada existe além de nós e de nossas experiências.

A primeira vista, esta parece ser uma ideia demasiado radical e idealista. De fato, é radical a premissa de que a única realidade cognoscível é o “eu”. Mas não é idealista. Idealistas são as distorções possíveis e infelizes a partir do solipsismo: somente eu existo e, portanto, somente eu comando o mundo ao meu redor, entre outras bobagens.

O solipsismo é, antes de tudo, ceticismo. Trata-se de uma contínua desconfiança do caráter “real” das coisas percebidas, incluindo a “realidade” do próprio “eu”. Partir do pressuposto de que existe o “eu” anula de antemão a possibilidade solipsista. Ser solipsista significa duvidar, sobretudo de si mesmo. A virtude básica do solipsista é a coragem de viver sabendo-se amaldiçoado pela desconfiança, pela possibilidade da mentira.

Acho que o filme “Sinédoque, Nova Iorque” (Charlie Kaufman, 2008) configura o melhor retrato desta condição solipsista. Não dá para descrever o filme sem assassiná-lo, mas a história é basicamente a seguinte: na tentativa de construir uma peça de teatro que retrate perfeitamente a realidade, o protagonista Caden Cotard passa anos em um galpão reconstruindo os cenários, os personagens e as experiências de sua vida.

Sinédoque é uma figura de linguagem (como metáfora ou alegoria) que toma a parte pelo todo. Assim as cenas são articuladas: sem aviso prévio, os fatos não são narrados sucessivamente, mas se atropelam. É como se os fatos em si não fossem suficientes para se construir uma experiência. A ordem dos fatos, os diálogos e seus respectivos significados são muito menos importantes do que a forma como foram vivenciados pelo protagonista.

Mas o grande traço solipsista deste enredo é o seguinte: Caden Cotard transforma sua própria vida numa ficção tentando com isso torná-la mais real. E ao chocar-se contra os limites da realidade, Caden percebe que não existe uma única realidade possível, mas que cada personagem constitui um mundo particular e, ao mesmo tempo, todos os mundos possíveis. Logo, muito mais do que perceber a realidade, nossas experiências interpessoais são capazes de criar e ampliar realidades.

Voltando ao raciocínio solipsista, quero pontuar algumas questões. Aquilo que chamamos de “realidade” é resultado de uma experiência subjetiva, isto é, uma circunstância afetiva individual. Esta “realidade”, portanto, pode ser vivenciada e compreendida somente dentro de uma esfera subjetiva. Mas quando “traduzimos” nossa realidade para outras pessoas, nossa realidade adquire novos significados, assim como a realidade das outras pessoas. E nesta troca interpessoal, estamos criando, ampliando e propagando diferentes realidades.

O designer é um articulador de realidades. Ocultar e ao mesmo tempo revelar uma ou outra realidade é o que fazemos enquanto designers. Designers solipsistas são aqueles poucos que conseguem traduzir sua realidade particular à esfera interpessoal. Para tanto, suas experiências devem ser ao mesmo tempo subestimadas e excessivamente valorizadas – eles sabem encantar as pessoas sem transparecer a menor pretensão disso.

Em todo caso, o fato é que nossa vida é completamente fictícia. Por um lado, isso implica que a qualquer momento podemos nos deparar com a ficção em si, com a mentira da realidade. Por outro lado, significa que podemos nos tornar “coautores” da realidade, participando das diversas ficções que estão sendo vivenciadas ao nosso redor, remodelando-as e ampliando-as. Há tantas realidades possíveis quantas ficções que contém realidades particulares.

Em nível epistemológico, o solipsismo implica que a realidade é feita de circunstâncias, relações e interações. Trata-se daquilo que Merleau-Ponty (1992, p. 188) chama de entrelaçamento ou quiasma e que define o pensamento filosófico: “compreender aquilo que faz com que o sair de si seja entrar em si e inversamente”.

Não importa saber se a “realidade em si” existe materialmente ou idealmente, não importa saber o que é a “coisa em si”. O que importa é entendermos como a realidade é vivenciada através de experiências intersubjetivas, preocupando-nos com o modo de olhar para as coisas. Afinal, não estamos isolados em nossos mundos privados e individuais, mas estamos participando de um mundo intersubjetivo, com a possibilidade de ampliá-lo.


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Filosofia do Design – O Designer bem-sucedido

| Author: #Design |


Embora me faltem dados estatísticos concretos, tenho a intuição de que o número de psicólogos que se formam por ano é maior do que o número de engenheiros. Com a mesma intuição, porém, creio que a demanda brasileira por engenheiros é maior do que por psicólogos. Logo, a maioria dos psicólogos trabalha com RH, secretaria ou até almoxarifado. Parece familiar? Não responda ainda. Lembre-se apenas de quando você estava aprendendo a tabuada na escola e me diga se o seu estereótipo de bem-sucedido era, por acaso, o contador ou o contabilista.

Não, bem-sucedido pra uma criança (e pra qualquer um) é o pugilista que ganha 5 milhões numa noite, a modelo que recebe 15 milhões por desfile, o cantor que arrebata 500 milhões num disco. Situando-nos, agora sim, no Design, vemos a falta de interesse dos alunos pela produção acadêmica (muitos se formam sem ter um único artigo publicado) e a consequente dificuldade de argumentar sobre seus projetos. Talvez o ideal do designer bem-sucedido dos professores, necessariamente pós-graduados, não seja o mesmo ideal dos alunos. A questão “como posso aplicar isso no mercado?” revela a grande distância entre o que é ensinado e o que o mercado exige. Por outro lado, entre os alunos, muitos desconhecem o verdadeiro papel da academia diante do mercado de trabalho, embora tenham optado (ou foram forçados?) a ingressar em uma faculdade.

Porém, os próprios professores hesitam sobre o verdadeiro papel da academia ao depararem-se com o dilema: o Ensino do Design deve guiar ou ser guiado pelo mercado? Sem saberem responder, ensinam determinados métodos como leis ou regras antes mesmo que o aluno tenha uma experiência projetual em si, isto é, uma necessidade real de se projetar. Pior que isso, censuram os poucos alunos que tentam pesquisar os diversos métodos existentes além daqueles que são ensinados. Para o educador anarquista Celéstin Freinet (1988, p. 15), “O problema essencial da nossa educação não é de modo algum – como pretendem hoje nos fazer crer – o conteúdo do ensino, mas a preocupação essencial que devemos ter de fazer a criança sentir sede”.

Retomando o ensino de Design, noto que as disciplinas teóricas, mesmo quando procuram demonstrar a aplicação da teoria, não provocam a sede ou o apetite no aluno, mas sim enfiam o conteúdo “goela abaixo”. Certamente há um abismo entre a teoria e a práxis do Design, abismo esse que se intensifica quando qualquer questionamento primário (O que é design? Arte ou técnica? Criatividade ou método? Estética ou função?) é desencorajado pelos professores que, por sua vez, consideram tais questões demasiado polêmicas e improdutivas. Consequência disso é uma eterna repetição que se perde na causa e no sentido, fazendo com que o aluno engula a teoria e tenha sempre uma indigestão posterior.

“É provável que nos digam que não temos de formar sonhadores, mas homens práticos” (FREINET, 1988, p. 21). Seguindo o mecanismo mercadológico de requisitos e prazos, os alunos são avaliados por meio de um check-list de metas a serem cumpridas. Você é forçado a manter o foco, desprezando sua curiosidade em saber como poderia ser de outro jeito que não o jeito certo. Se o mercado não permite que o designer seja curioso, em que momento além da academia que haverá a oportunidade para isso? Não raro, o aluno cola na prova teórica, faz um trabalho de última-hora ou inventa uma mentira para tentar recuperar a nota.

Então o professor descobre tudo e dá uma lição de moral no aluno. Ora, todos querem ser bem-sucedidos e, no entanto, o fracasso inibe, destrói o ânimo e o entusiasmo. Reiteramos que o aluno é avaliado por ter cumprido uma tarefa, num determinado prazo e dentro de um conjunto de requisitos. Não é avaliado pela criação em si, fundamentação, articulação de ideias ou mesmo pela construção de seu próprio caráter. Essa tomada de consciência, sem dúvida, se apresenta como um grande desafio em um meio que pretende ser eficaz e objetivo. Frente a isso, o que eu proponho neste texto é apenas algumas das diretrizes de Freinet aqui adaptadas (sem muito esforço) ao ensino de Design.

Em primeiro lugar, ninguém gosta de trabalhar sem objetivo, atuar como máquina, sujeitando-se a rotinas nas quais não participa. Seguindo o raciocínio de Freinet (1988), é fundamental a escolha do aluno e a sua própria motivação com relação não apenas ao seu próprio projeto, mas aos seus próprios objetivos e métodos. Aliás, os métodos devem ser vistos como ferramentas, não como regras a serem seguidas cegamente. Restrições, requisitos e metas fazem parte do mercado e o aluno deve saber disso. Porém, o professor deve auxiliar o aluno a usufruir de suas potencialidades, deixando claro que o mercado é apenas uma dentre tantas outras possibilidades. Do mesmo modo, a distância entre teoria e prática deve ser evidenciada e não escondida. A ambiguidade, a incerteza e os percursos entre o objetivo e o subjetivo são prerrogativas que, embora não sejam bons critérios de avaliação, ajudam a diminuir essa distância quando não são reprimidas. A avaliação do aluno, por sua vez, deve ser feita simplesmente conforme o seu envolvimento, participação, qualidade de presença em sala de aula e potencial reflexivo-argumentativo.

Isso tudo é óbvio. Tão óbvio quanto o papel do professor em tornar o aluno sujeito do seu próprio conhecimento, sendo a aplicação desse conhecimento dependente do sentido e do valor que o aluno contempla em seu ato de conhecer. Mais do que óbvio, porém, cabe a nós fazer disso algo que nos pareça finalmente familiar.

“Somos uma geração de copistas-copiadores, de repetidores condenados a registrar o que dizem ou fazem homens que nos afirmam ser superiores e que, muitas vezes, só têm sobre nós o privilégio da antigüidade nessa arte de copiadores e de repetidores. Somos uma geração para a qual a obra criadora, esse primeiro escalão da obra de arte, foi reduzida à clandestinidade. Estude! Copie! Repita!… Você nunca tirará nada de esplêndido das suas mãos desajeitadas e do seu cérebro.

Fonte. designsimplesLink